UM CANTO PARA UM CONTO




O CONTO DO JOÃO NINGUÉM
                                                                                   por Cláudia de Villar

                                                                             

Era uma vez um menino chamado João Família.
 Logo ao chegar à idade escolar a sua mãe, uma dona de casa, e o seu pai, um pedreiro e frequentador assíduo de bar, nada refletiram, afinal, já havia a escola pronta, ali  perto de sua casa, era só matriculá-lo.
 O que esperar da escola? 
Teto, merenda e sossego.
 E conseguiram suprir tais desejos até o guri chegar ao primeiro ano.
 O que esperar do primeiro ano? 
Caderneta sem bilhete, merenda, sossego e teto.
E assim ia João Família.
A paz e o sossego iam bem até que certo dia "D", que modificou todo o futuro de João Família, algo aconteceu: o guri levou um bilhete para casa: 
"Conversa muito, é desatento, não copia, não lê e não faz o tema". 
A partir daí, nunca mais João foi Família.
Mãe na escola furiosa: Afinal, por que tanto alarde? Elas, as profes, que deem aula sem importunar! Não tirem o meu sossego! Quero ver novela e dormir!
E o pai? Não atrapalhem um homem alienado e frequentador de bar.
Barulho na escola!
 E elas preocupadas, o que será de João?
Silêncio.
No ano seguinte, o segundo, João nada lê, mas frequenta a turma. 
Reprovar é maldade, traumatiza.
João percebe os colegas lendo, escrevendo e participando.
Ele nada lê, nada escreve (mal desenha o seu nome) e quase não participa.
Família chamada à escola novamente.
Barulho na escola.
Para que incomodar a mãe? Por causa disto?
 Faça o seu trabalho e me deixe sossegada! 
Quero paz.
Não me chamem mais para isto?
Silêncio.
João, agora Sem família, é aprovado para o terceiro ano.
Reprovar traumatiza.
Família e governo sustentam esta Lei (e alguns profes).
João segue sem ler, sem escrever, mas come merenda e tem um teto.
É depositado na escola.
Dados de reprovação diminuem.
Governo e famílias felizes: meu filho aprovou.
Seguem os anos...
Ele mal lê! Diz a escola.
João vê os colegas seguindo em frente, não acompanha a leitura, as escritas, mas come merenda, vai para o recreio e tem um teto.
Um dia, uma delas não se conforma com o caso do João.
Chama a família.
Mais barulho na escola.
Novamente?! Ela me chama, pra quê?
Quadro da dor:
 João não lê, desenha letras no caderno, corre, brinca, atrapalha a turma.
Família não gosta: 
Você está errada! Ele é um  bom guri. É bullying. 
 Coitado do João que está sendo perseguido.
Reunião.
Conclusão: João é um coitado, fruto de uma sociedade injusta, que não compreende, não entende, não dá chance para os excluídos.
João...
João segue sem ler, sem escrever, sem perceber o que está por vir, mas tem merenda, tem recreio, tem teto e faz parte do índice dos aprovados.
João é bom.
Por fim, João sai da escola.
É empurrado pra vida.
Continua sem ler, sem escrever e agora também sem recreio, sem merenda e sem o teto protetor.
Mãe continua dona de casa, vendo sua novela.
Pai, não mais pedreiro, continua alienado e assíduo frequentador de bar.
E João?
João com este BOM currículo não consegue emprego digno.
Vai pra fila dos incapazes, mal preparados, analfabetos funcionais.
Um dia João se desilude, vai pro bar com o pai.
Gosta.
Afinal, lá não precisa ler, nem escrever, 
mas tem merenda líquida, um teto e um recreio adulto.
Adulto.
Apaixona-se, mas não sabe escrever bilhete.
Mas João fala e se declara.
A guria quer coisas: bolsa, pulseira, novela em tv led.
Ele nada tem para oferecer com o seu subemprego.
A guria nada quer com um João-Ninguém.
João se desespera.
Chora, grita!
Não quer ser um João-Ninguém.
Não vê futuro no futuro prometido pela sua família, por aqueles que o aprovaram e pelo governo "coitadista".
Seu futuro está ali na esquina: dinheiro fácil e rápido.
João, o coitadinho, arruma vaga no transporte de pedrinhas.
As pedrinhas compram pulseiras e tv led.
Um dia, péssimo dia, João, o coitadinho,
 fica frente a frente com o futuro plantado no seu passado. 
Chegou a hora da colheita de João.
Um metal bélico não tem piedade.
João não é mais "o coitadinho", mas traz o mal para frente da sua antiga escola.
Guri malvado, o João.
Num vapt e vupt lá se foi João.
Rápido.
Barulho na escola.
Silêncio.
Bah... quem é o guri ali no chão?
Desconhecido?
Não.
Aquele é o coitadinho do João-Ninguém.
                                                                     Fim

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 Canto para a reflexão
 
João é fruto do coitadismo, de uma sociedade e de um governo que não apoia a educação, que pensa que "dar conteúdo", "dar matéria" é retrógrado, é passado, agora a moda é ser apenas aprovado.
Pense nisto já e repense a aprovação do coitadinho do João-Ninguém.


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MARIA BRASILEIRA
                                            por Cláudia de Villar

Maria brasileira nasceu numa família não muito planejada, não muito educada e não muito feliz.
 Veio ao mundo a partir de um sonho de verão apresentado na televisão.
A mãe de Maria, também brasileira, pariu cedo, ao som da música do momento, banhada com as imagens doces das telenovelas alegres.
Com Maria Brasileira não foi diferente. A guria cresceu em frente à TV. Mas nada de jornais. Pra que se incomodar?
 Novela é mais fácil, mais suave e 
dá mais assunto para o debate na escola.
Maria, a guria brasileira, via tudo com os olhos brilhantes: os mocinhos pobres tornando-se ricos empresários, as mocinhas ingênuas transformando-se em lindas princesas. As mulheres das capas de revistas, com suas bundas e peitos grandes, apontadas como o “modelo” da mulher brasileira, enquanto as moças “normais” e trabalhadoras faziam greve para receber salário justo, levando uma vida dura, segundo os conceitos de Maria.
Não, não e não. 
Maria queria uma vida mais leve, mais suave, 
mais fácil, mais mole.
Maria Brasileira queria ser princesa. 
Queria aparecer nas capas de revistas, 
ao lado dos famosos jogadores, não queria acordar cedo, viver esmagada nos ônibus, enfrentando 8h diárias para sobreviver. Maria queria crescer e aparecer.
Na escola, Maria percebia que as meninas da hora eram aquelas que assistiam às novelas, não as que faziam as análises sintáticas naquela escola sem brilho.
 O que ela iria aprender naquela escola que a transformasse em princesa? Se as novelas também eram capazes de ensinar? Afinal, empregada doméstica vira Super Star, 
 com direito a marido milionário e tudo?  
 Uma legítima MARIA BRASILEIRA.
 Produção independente também é moda, pois a apresentadora de programa foi lá, fez e criou sozinha! 
E é exemplo de sapinha que virou princesa.
Logo, Maria Brasileira pensou:
 Por que não eu? 
Eu sim.
Maria, a guria brasileira, influenciada pela mídia, emagreceu onde tinha que emagrecer, ganhou carne onde tinha que ter, largou os estudos, pois era isto o que a faria aparecer e se jogou na vida para poder SER.
Conquistou as ruas da sua cidade, ganhou o coração do “sapão”, o príncipe esperto.
 Enfim, tornou-se a princesa coroada com as joias roubadas.
Maria Brasileira dançou, pulou, requebrou, fumou, apanhou, desfigurou e chorou.
Não fez greve, não enfrentou ônibus lotado, mas como uma boa e fiel companheira de seu sapo, ajudou-o em sua luta contra a falta de brilho e acabou por reforçar os números prisionais.
Antes tivesse feito as benditas análises sintáticas daquela escola sem brilho.
Decepcionou-se com o seu conto de fadas que não deu certo como nas novelas.
Percebeu, tarde demais, que o sonho novelesco vendido pela mídia não passava de sonho.
Pobre da Maria Brasileira que não deu certo como as Marias da televisão.
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Canto para a reflexão

Maria Brasileira ilustra as muitas Marias que pelas escolas passam e são iludidas pelas mídias que retratam uma vida fácil e sem esforço, com as suas inúmeras personagens novelescas tão gloriosas e sem estudo, dando ênfase, erroneamente, ao sucesso rápido, sem esforço, sem estudo e sem trabalho. Reforçando como sendo o exemplo de beleza a magreza faminta, a pobreza cheia de bundas carnudas e princesas de seus sapos nada príncipes, porém dignos das manchetes de tvs.
Perigo nas escolas. Os maus exemplos milionários competem com os bons exemplos lutadores e batalhadores e tão reais do nosso dia-a-dia. Difícil tarefa para as escolas globalizadas e que se deixam influenciar pelas novidades da hora. Na ânsia de querer ser legal com os alunos, de manter um diálogo no mesmo nível com a gurizada, perdem-se na poeira e os valores ditos ultrapassados não são mais aplicados e cobrados. Acordem escolas! Não deixem que a mídia iluda seus alunos tão pobres de exemplos a seguirem. O exemplo somos nós, professores.

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